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segunda-feira, 6 de junho de 2011

Revista VALEPARAIBANO

Revista vale Paraibano
27 de Maio de 2011 às 17h03       Rede Pública
 
 

O fiasco da saúde em São José

Hernane Lélis
São José dos Campos


Desde os quatro anos de idade João Pedro Chaves vive à base de antiinflamatórios, inalação, dilatadores nasais e injeções para dor. O problema poderia ser resolvido com uma simples cirurgia, mas se tornou crÃ?nico, assim como o drama do garoto. Ele precisa realizar um exame nasal antes de encarar o bisturi, mas há oito meses se juntou a outros pacientes encostados numa fila de espera que não se sabe como anda e como termina no sistema público de saúde de São José dos Campos, onde quase cem mil pessoas aguardam por consultas e procedimentos especializados.
O diagnóstico da rede municipal de saúde, traçado pelos próprios pacientes, é deprimente. Reclamam do sistema de emergência, postos e ambulatórios lotados, falta de médicos e enfermeiros, leitos insuficientes, entre outras situações relacionadas à infraestrutura que comprometem o atendimento à população. As queixas se alastram em todo o setor como uma epidemia. No caso de consultas e cirurg ias, a precariedade se reflete também em números. São 12.532 pessoas aguardando por um oftalmologista, 10.333 por um ortopedista e 9.791 à espera de um dermatologista. Outras 1.052 pessoas anseiam por uma cirurgia de catarata, 1.841 por uma intervenção cirúrgica ortopédica e 1.303 por cirurgia plástica. Somando todas as especialidades, são 84.022 pacientes à espera de um médico.
Para procedimentos, exames que podem ser agendados por não implicarem risco imediato à vida, são 15.410 pacientes na fila, incluindo João Pedro, que hoje está com 12 anos. A maior parte da demanda neste caso é para endoscopia, com 2.523 pessoas, seguido pelo teste ergométrico, com 2.059 pessoas, e mapeamento de retina, com 1.945 pacientes –nos dois sentidos da palavra. No total, entre consultas, exames e cirurgias, chega-se a uma fila de espera com 99.432 pessoas, que, se colocadas uma atrás da outra, formaria uma linha reta de 50 quilÃ?metros de extensão –pouco mais que a distância que separa os municípios de São José e Taubaté, num percurso cansativo, desgastante e burocrático, que pode demorar até dois anos para ser concluído.
“Hoje, espero para fazer o exame, depois ainda tenho que enfrentar outra fila para o médico analisar o resultado do exame, e por último mais uma fila até a cirurgia. É complicado, todo mês gasto cerca de R$ 50 com remédios para tentar amenizar o sofrimento dele, que dorme mal, sente dores, nariz sangra, e no inverno a situação fica ainda mais complicada”, disse Cícera Bentos Chaves, mãe de João Pedro, que mora com o marido e outros dois filhos, de 6 e 4 anos, numa pequena casa no bairro Putim, região sudeste da cidade.
A demanda reprimida foi computada pelo SNA (Sistema Nacional de Auditoria), mecanismo de controle técnico e financeiro que regula as ações e serviços do SUS (Sistema Único de Saúde), entre os dias 27 de agosto e 1º de outubro de 2010. O resultado foi encaminh ado ao Conselho Municipal da Saúde de São José em 12 de janeiro desse ano. Segundo a própria administração municipal, não houve nenhuma mudança significativa na lista de espera desde a avaliação dos auditores, que recomendaram “ampliar a oferta de consultas e procedimentos especializados, em especial aqueles em que há grande demanda reprimida”.
A auditoria foi feita a pedido do Ministério da Saúde para averiguar os principais gargalos da gestão básica da saúde de São José. A demora para atendimento e a grande quantidade de pessoas na fila de espera foram os únicos problemas apontados no levantamento. De acordo com informações da SNA, a prefeitura teria elaborado uma defesa em relação à quantidade de pessoas aguardando por uma consulta e encaminhado ao setor responsável no ministério. No documento estariam algumas adequações que seriam feitas pela prefeitura, por meio da Secretaria de Saúde.
“Aguardamos novas instruções do minist ério sobre quais serão os próximos procedimentos. Fizeram a defesa deles e encaminharam para Brasília. Provavelmente faremos uma nova auditoria, o que chamamos de auditoria de acompanhamento, para saber se aquilo que recomendamos de melhorias está sendo feito. Nenhuma outra auditoria havia sido feita neste sentido ainda, somente duas para apurar denúncias, mas já faz muito tempo”, disse Elias Naiberg, auditor do Sistema Nacional de Auditoria.
O Ministério da Saúde informou que foi enviado um ofício à Secretaria de Saúde, solicitando ao gestor responsável, à época o secretário Jorge Zarur, informações sobre as medidas corretivas adotadas. Entre elas estariam a contratação de novos médicos, instalação de um laboratório de reumatologia e ampliação dos convênios com a SPDM –entidade gestora do Hospital Municipal–, AME (Ambulatório Médico de Especialidades), Hospital Pio 12 e Provisão, responsável pelas consultas e procedimentos oftalmolà ³gicos no município.


Diagnóstico


Quatro dias após conceder entrevista à revista valeparaibano sobre o assunto, o médico cardiologista Jorge Zarur, 55 anos, pediu demissão da Secretaria de Saúde alegando falta de apoio político para continuar no cargo. Em seu lugar foi nomeado o cirurgião-geral Danilo Stanzani Júnior, 42 anos, médico de carreira na prefeitura e ex-diretor técnico do Hospital Municipal. A primeira medida de Stanzani a frente da pasta foi alterar o método de agendamento de consultas para tentar desafogar o sistema. Agora, o paciente pode ir a UBS (Unidade Básica de Saúde) em qualquer dia útil para pedir vaga, diferentemente do que ocorria antes, quando era necessário ir sempre ao primeiro dia de cada mês. O problema é que nenhuma das opções garante atendimento a curto prazo.
Quando questionado se houve alteração no quadro de agendamentos apresentado pela SNA, Jorge Zarur, ainda na condição de secretário, afirmou que pouca coisa mudou desde a auditoria, ou seja, Stanzani tem como herança da última gestão quase cem mil pacientes disputando horário na apertada agenda da rede pública de Saúde. Para Zarur a situação é aceitável, já que a cidade recebe diariamente pessoas de outras cidades do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira, à procura de procedimentos, chegando a prestar até 100 atendimentos por dia fora da demanda municipal.
“Tem muita gente de fora do sistema, de outros municípios, tem certos períodos que o número de adesões à nossa rede passa de 100 por dia. O que eu tenho hoje é uma demora parecida com a da época da auditoria e que vem se mantendo, em torno de três meses, em média [o tempo de espera somente para consultas e exames]. Tenho 88.432 pessoas à espera de consultas, atendo 28 mil por mês. Esse número está mais ou menos estável, mas com tendência a aumentar, periodicamente ele aumenta”, explicou Zarur, que para chegar a pouco mais de três meses de espera em exames e consultas dividiu o total de pessoas na fila pelo número de atendimento.
O problema na resolução matemática apresentada fica na falta de informação referente à quantidade de pessoas que entram com pedidos de consultas e exames dentro do mesmo período. Sem esse número, que não foi informado pela Secretaria de Saúde, fica impossível, por exemplo, ter uma média de quantos pacientes seguem sem atendimento nesses 90 dias, uma vez que da mesma maneira que diversos procedimentos são realizados diariamente, uma expressiva quantidade de usuários não consegue passar por um médico, formando então a demanda reprimida municipal.
Desde a saída de Jorge Zarur, no dia 13 de maio, a revista valeparaibano tentou inúmeros contatos com o novo secretário de Saúde, Danilo Stanzani, para falar sobre o assunto. Por meio de nota enviada por sua assessoria de imprensa, o gestor limitou-se a dizer que pretende ampliar a rede de assistência municipal, os prestadores de serviços, assim como a oferta de consultas especializadas disponibilizadas mensalmente pelo AME, unidade ambulatorial que é mantida pela Secretaria Estadual da Saúde.
“Entro com a vontade de fortalecer a rede básica de saúde e melhorar as condições de trabalho dos funcionários, e tudo será discutido e estudado com o objetivo de ampliar o vínculo do paciente com suas Unidades Básicas de Saúde e também com os programas de promoção à saúde por elas desenvolvidas”, disse o secretário, acrescentando que o AME realiza 8.000 consultas especializadas por mês e que o agendamento é feito levando-se em consideração a demanda, a oferta e a priorização médica.
Sob o argumento de que está há pouco tempo no cargo, o secretário deixou de responder se existe um prazo para a administração acabar, ou mesmo diminuir, a longa fila de espera. Não explicou os motivos que levam pacientes aguardarem anos por atendimento, além de não fornecer a quant idade de pedidos por consultas e exames que entram mensalmente na rede pública, reiterando apenas que o sistema realiza 36 mil consultas especializadas por mês, somando-se a demanda das UBS e do AME.
A Secretaria Municipal de Saúde tem 713 médicos de 32 especialidades inscritos nas UPA (Unidade de Pronto-Atendimento) e UBS. Entretanto, o número de profissionais trabalhando na rede seria menor, já que alguns teriam duplo vínculo com a administração –foram aprovados em dois concursos públicos para dobrar a jornada de trabalho. A categoria estima que pelo menos cem médicos estariam nessas condições, reduzindo para 613 o total de profissionais.
A falta de especialistas para atender a crescente população joseense é uma das principais causas apontadas para a perpetuação da demanda reprimida no município. Nos últimos sete anos, entre 2005 e 2011, a prefeitura perdeu 386 médicos de seu quadro funcional, sendo 293 pedidos de exoneração, 45 aposenta dorias, 20 demissões, duas mortes e 26 licenças. No mesmo período, 382 profissionais foram contratados para reposição.
São José tem 1 médico para cada 880 moradores, uma proporção muito aquém da média mundial, que é de 1 para cada 300 habitantes. A situação na gestão pública da saúde do município é pior que a média nacional –no Brasil há um médico para 595 habitantes, segundo estudo realizado pela FGV (Fundação Getúlio Vargas).
“Precisam melhorar a saúde pública, precisamos ter mais médicos na rede. Abrem-se concursos e ninguém quer fazer inscrição para trabalhar em São José. As poucas pessoas que prestam concurso começam a trabalhar e logo pedem demissão, isso não é segredo para ninguém. Eles [a administração] sabem dessa realidade, mas nós precisamos mudar essa realidade. Esperamos uma mudança em toda a política de saúde com essa troca de gestão, não adianta apenas mudar a pessoa”, disse a pediatra Neusa Hele na Massula de Melo, representante da Comissão de Médicos de São José.
No ano passado, o investimento na área de saúde foi de R$ 354,4 milhões. Desse total, R$ 93 milhões vieram de transferências relativas aos programas federais, principalmente do SUS. O orçamento previsto para este ano é de R$ 391,3 milhões, sendo R$ 94,8 milhões de transferências federais –10,5% maior que em 2010. A verba da Secretaria de Saúde corresponde a 24% do orçamento municipal.


Espera


Estudante da 9ª série do ensino fundamental, Jéssica Mota, de 14 anos, pratica basquete, dança e futebol. Na lista de atividades que desenvolve na escola também constava capoeira. No entanto, há pouco mais de seis meses ela teve que abandonar o esporte devido a fortes dores que sentia no joelho direito. A primeira iniciativa foi procurar um hebiatra no sistema público de São José. O médico encaminhou a garota a um ortopedista, mas passado um ano e quatro meses ainda não conseguiu ser atendida pelo especialista.
Diante da falta de retorno, Ana Cristina Mota, 32 anos, mãe de Jéssica, decidiu procurar a UBS próxima à sua casa. Foi informada de que não existia previsão de atendimento, sendo orientada pelos funcionários a aguardar contato da unidade. “Eles não informaram os motivos, mas só pode ser falta de médico para atender a todos. Pensei procurar um atendimento particular, o problema é o preço de uma consulta. Além disso, pago meus impostos e m dia para ter atendimento médico gratuito”, disse.
O desabafo de Ana Cristina não é isolado. Em qualquer canto da cidade é fácil encontrar alguém que sofre com as incertezas provocadas pelo sistema de agendamento na rede pública. Terezinha Maria de Carvalho, também está na fila por um ortopedista. Com 61 anos de idade e graves problemas de saúde, procura manter a paciência na agonizante espera por atendimento. Desde o encaminhamento ao especialista, onde pretende encontrar um tratamento adequado para controlar a osteoporose, já se passaram um ano e três meses.
“Já estou acostumada com isso tudo. Fui criada e criei meus filhos nos hospitais públicos. Posso não ser um caso de emergência hoje, mas com essa demora isso pode acontecer, digo, virar uma urgência. Quem sabe se durante todos esses anos eu tivesse tido um atendimento adequado, não tivesse tantos problemas de saúde. Sobrevivo com a aposentadoria do meu marido, é pouco para ir numa c onsulta particular. Eles [o poder público] que precisam garantir nosso atendimento, colocando mais médicos para trabalhar”, afirmou Terezinha.
Professora de Saúde Pública da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e diretora do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde), Ligia Bahia, afirma que a situação encontrada em São José e em diversas cidades brasileiras traz consequências perversas. Sem gestão efetiva das filas, não há como priorizar casos mais graves com base na idade, tempo de espera e real situação clínica. A falta de transparência também agrava o problema, uma vez que não é uma lista que permite o acompanhamento de quem nela esteja sobre o fluxo de pessoas que já foram atendidas.
O problema, de acordo com a professora, tem raiz na estrutura da saúde pública. Como a quantidade de leitos, profissionais e equipamentos é inferior ao necessário, as unidades de saúde priorizam procedim entos de urgência e emergência. A lógica do mercado também é um fator que contribui para a forte demanda reprimida. Médicos e hospitais conveniados preferem realizar consultas e procedimentos privados ou de convênios, uma vez que eles remuneram melhor que o SUS.
Para sua tese, Ligia apresenta dados do Instituto Brasileiro para Estudo e Desenvolvimento do Setor de Saúde que apontam uma diferença de 50% a mais, em média, no valor pago pela rede particular. A diretora lembra ainda que, em países como a Inglaterra, há limites para a espera, podendo o Brasil caminhar para uma regulamentação semelhante. “Penso que nos acostumamos a tolerar grandes desigualdades e tratá-las como inevitáveis. Temos falta de recursos financeiros e humanos e gastamos mal o que temos. Hoje, o Brasil gasta menos com saúde e tem uma relação médico/habitante menor do que vários países da America Latina. Além disso nossos serviços de saúde são geridos de maneira improvisada e quem neles trabalha está desestimulado. Esses ingredientes fertilizam o solo do tratamento desrespeitoso aos cidadãos que acorrem aos serviços públicos”, disse Ligia.

Embate


Enquanto milhares de pessoas aguardam por atendimento clínico em uma fila quilométrica, médicos e prefeitura travam há pouco mais de um mês um embate para resolver a questão da remuneração paga pela administração aos doutores e doutoras do sistema público municipal. O salário base dos médicos na rede é de R$ 2.200 por 20 horas de trabalho semanal, porém o governo de Eduardo Cury (PSDB) alega que o salário médio pago à categoria é de R$ 6.600, em função dos benefícios.
Os médicos querem que a prefeitura dobre o salário base para R$ 4.400, contrate pelo menos mais 100 especialistas e melhore as condições de trabalho. Enquanto o impasse não chega ao fim, pacientes ficam sem atendimento por conta das paralisações esporádicas na rede pública organizada para pressionar o governo sobre as reivindicações. Diante desse cenário, a administração assinou contrato com uma empresa para prestar atendimento à população numa eventual ausência de médicos nas unidades clinicas.
A Ideas (Instituto de Desenvolvimento Estratégico e Assistência Integral à Saúde) foi contratada por R$ 513 mil na segunda quinzena de abril em caráter de urgência, com dispensa de licitação. Foram 30 dias de serviços prestados. A pedido dos médicos, o Ministério Público Federal abriu inquérito para verificar a legitimidade da contratação da empresa.
A categoria garante que apoia apenas paralisações discutidas e aprovadas em assembleia, como a que ocorreu no dia 24 de maio, por isso, nada justificaria a contratação da Ideas sem licitação para ocupar o lugar delegado aos médicos nos plantões. “Fazer plantão é a única forma de conseguir aumentar um pouco a nossa renda, todo médico da rede quer fazer hora-extra e se sentir valorizado na profissão. Aguardamos uma posição da prefeitura sobre nossas condições de trabalho”, explicou a pediatra Neusa Helena Massula.

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